LADFEST 2023: Inspiração a partir de talentos e histórias autênticas
Por Márcio Leite, Julho de 2023.
Máscara funerária pré-colombiana, Museo del Oro, Lima, Perú.
Nesta última semana de junho, tive o prazer de participar do LADFEST 2023 em Lima, capital do Peru. O evento, em sua 7ª edição, trouxe palestrantes da América Latina, Estados Unidos, Europa e Reino Unido, além de selecionar cinco jovens talentos - quatro deles do Brasil - para o 7º LADAWARDS.
Ao longo de três dias, ocorreram workshops, exposições e a conferência, realizada no imponente Teatro Municipal de Lima. As palestras proporcionaram quase 10 horas de apresentações de profissionais e estúdios de design, tipografia e ilustração, compartilhando suas visões e experiências únicas sobre a produção de design e comunicação visual na atualidade.
Um evento que marca um momento
Em um mundo onde se proliferam os "profissionais de software" e a padronização da produção através de templates, "canvas" e metodologias replicáveis para o mercado digital, foi um respiro de ar fresco ver uma plateia lotada de jovens ávidos por ouvir profissionais críticos que resgatam e mantêm os processos criativos gráficos experimentais. Profissionais que criam e exploram novas linguagens através de novas tecnologias, sem abrir mão porém dos discursos e retóricas que sustentam um trabalho consistente de design.
Assim como nos N Design, encontros de estudantes de design que ocorriam no Brasil pré-internet nos anos 90, o LADFEST condensou em 3 dias aquele mesmo espírito de confraternização, entrosamento e reflexão crítica sobre a profissão.
Neste evento, jovens talentos e estudantes puderam ouvir e conversar sobre os rumos da produção criativa nos tempos atuais, com a desmaterialização da produção e consumo, a busca por diálogos inclusivos e a conscientização dos impactos socio-econômicos-ambientais e as condições da precariazação do trabalho.
Genuinamente Humano
Diferente de festivais de inovação e conferências focadas apenas no mercado, o LADFEST é feito de pessoas e suas histórias, e como essas histórias se entrelaçam com suas linguagens e recursos de criação.
Vai muito além da conversa superficial e produtivista que circula hoje sobre tecnologias emergentes, performance e KPIs, ops e produtividade em escala, ou sobre atender requisitos de mercado para produção digital. Os conferencistas deram um show ao expor os viéses inegavelmente humanos do design, expondo vulnerabilidades, superações pessoais e emoção.
Cada um dos 12 conferencistas, além dos 5 jovens talentos, trouxe em suas belíssimas falas percepções sensíveis, sentimentos e suas relações, construídas e vivenciadas ao longo da realização de seus trabalhos e ao longo de suas carreiras, em seus respectivos estúdios e países de origem.
A seguir estão algumas das percepções e destaques que ficaram comigo após as palestras e exposições vistas na conferência:
1 - Paixão pelo fazer e respeito à história do cliente
O evento começou com os colombianos do Bastarda Types, especializados em desenho de letras e type branding. Eles apresentaram um trabalho minucioso e consistente, demonstrando paixão pela tipografia e respeito pela história e tradição de seus clientes, como no caso apresentado da renovação da identidade da Federação Colombiana de Futebol. Além de comercializar suas criações tipográficas em seu site, eles abraçam criativamente as necessidades de seus clientes desenvolvendo um trabalho tipográfico com muita personalidade.
2 - Experimentação e profundidade crítica
A peruana Vera Lucía Jiménez com um trabalho entre a arte e o editorial explora de forma experimental a representação gráfica do entorno, dando dimensionalidade gráfica ao som e espaço, usando de ritmo, cadencia e repetição para explorar novas dimensões na composição gráfica com materiais diversos como adesivos e tiras de tecido. Seu trabalho expõe não só sua sensibilidade mas também sua profundidade crítica e altamente reflexiva. Uma verdadeira Michel Gondry do trabalho impresso.
3 - Subversão de sistemas tecnológicos e interação ativa
A coreana Yehwan Song mostrou como com seu trabalho experimental obsessivo e instigante subverte o uso de telas e sistemas de interação provocando permanência, experiência e reflexão em oposição a funcionalidade e usabilidade trazendo arte, espacialidade e volumes da arquitetura, instigando uma interação digital inovadora, ativa e crítica.
4 - Nostalgia fantástica
A chilena Maria Jesús Contreras apresentou um trabalho delicado de observação e imaginação, humor e síntese, repleto de elementos particulares que contam histórias de realismo mágico, inspiradas na região chuvosa onde ela cresceu. Sua produção gráfica forte e cheia de identidade transmite uma nostalgia fantástica, com texturas que compõem cenários surrealistas, onde animais interagem com expressões e olhares delicados. É um trabalho apaixonante e muito delicado.
5 - Poesia concreta, modernista e sensível
Em seguida o chileno Fidel Peña, radicado no Canadá, com um elegante trabalho de composição tipográfica e fotografia, que flertam com a poesia concreta, em seu estúdio Underline Studio. O trabalho sublime e leve acompanha sua fala tranquila e inspiradora enquanto relata sua jornada pessoal pela profissão. Poético também ao compor o slide final de sua apresentação com uma foto de seus filhos com a frase "Se eu não arriscar eu não posso ser". Duas outras de suas frases, que entremearam sua apresentação e que espelham suas crenças:
"O design é uma linguagem e, para usá-la bem,
devemos conhecê-la profundamente",
e pelo design,
"Buscamos quem somos”.
6 - Retórica política e paixão caligráfica
Os argentinos Yaniguille&Co trouxeram paixão pela tipografia e ilustração e nelas uma voz política ao expor alguns dos seus trabalhos, como a identidade para a feira Masticar, em Buenos Aires. A proximidade e intimidade com a temática, valores e contexto do evento anual, realizado por produtores agrícolas da região argentina, fala tão forte quanto a paixão pela tipografia, ilustração e caligrafia. O trabalho extremamente elegante e complexo do estúdio expõe suas visões acerca da construção de sistemas de design para comunicação, além de contar as suas histórias pessoais de vida entrelaçadas com sua produção criativa, orgulho latino e valorização dos traços culturais do continente.
7 - Diligência, obstinação e consistência
Alejandro Flores fundador do estúdio HUMAN, mostrou sua diligencia, obstinação, consistência na busca por maestria e constante aprimoramento, tanto em seu trabalho como na gestão do seu negócio. Tal qual no discurso de um “techy-business-man” ou “faria-limer”, Alejandro traz uma visão da gestão do design acima de tudo como negócio, onde é necessário otimizar o uso de recursos e ter uma clara consciência de suas melhores habilidades e principais limitações, para poder tirar o melhor proveito das suas forças na construção de um trabalho sólido, cheio de identidade, promissor e não menos criativo por isso.
8 - A vida é uma ilustração colorida
A bem humorada ilustradora Maria Luque contou como a ilustração se fez presente desde sua infância e como ser uma criança peculiar a provocou a aprender a retratar o mundo que a cercava de uma forma muito particular. Contou diversas histórias mostrando suas viagens por outros países, seus amigos, relacionamentos, seu gato (que ela não possui realmente), descrevendo seus altos e baixos financeiros e demonstrando que viver uma vida bem vivida pode render memórias inesquecíveis e ilustrações felizes.
9 - Identidade, originalidade e individualidade
A brasileira Gabriela Namie, profissional do Google - Youtube Music, radicada em Nova Iorque falou, para além das pistas que deixou sobre abuso e burnout decorrente de relações tóxicas em grandes corporações, sobre a sua busca por espaços viáveis para criatividade e inventividade em ambientes mecanicistas povoados por engenheiros e técnicos, que estabelecem sucesso e efetividade do trabalho a partir de números atrelados à performance. Além disso fez uma reflexão sobre nacionalidade, origem, linguagem e respeito às diversidades e como sua visão sobre diversidade, sendo uma pessoa de ascendência asiática num país norte-americano, se refletiu em seus trabalhos pessoais e corporativos.
10 - Persistência e manter-se fiel a si mesmo
O Inglês Joseph Melhuish contou começou sua carreira como ilustrador em Londres enquanto se mantinha com empregos menores. Explicou como evoluiu em sua técnica de modelagem 3D, passando a utilizar novas tecnologias imersivas como softwares e óculos de realidade virtual, para construir seus trabalhos expressivos, comissionados por grandes marcas e canais de TV famosos. Também contou como quase se perdeu em seus trabalhos e colocou a perder a sua linguagem e estilo de criação de personagens obscuros e perversos, ao aceitar encomendas e ofertas muito distante de seu estilo e de seus temas de interesse - cultura club e festas de música eletrônica. Refletindo, entendeu que, com alguma maturidade é possível manter suas contas em dia sem abandonar o que verdadeiramente sabe e gosta de fazer.
11 - Tudo o que fazemos é por amor
Porto & Rocha - A dupla brasileira baseada hoje em nova Iorque contou em slides como de crianças pobres na periferia de São Paulo e Rio de Janeiro, a uma juventude trabalhando em ambientes tóxicos de agência de publicidade, construíram experiência suficiente para iniciar uma empresa no Brooklin com uma carteira de clientes impressionável. Contaram como de forma simples e honesta conseguiram mudar a visão de seus clientes, propor e convencê-los a adotar sistemas de design muito simples, mas com muita força de discurso e representatividade. Ao final, fecharam sua apresentação com uma linda declaração de amor, entre si e ao design.
12 - E depois de tudo isso ... O que representa sucesso?
O estúdio BASE design de Bruxelas, liderado pelo veterano Thierry Brunfault, contou como formou uma rede ambiciosa de estúdios em diversas capitais da Europa e nos Estados Unidos, que prosperou entre os anos 90-2000 sob uma dinâmica exaustiva e mentalidade hierárquica e se transformou, para se readequar às demandas e questões interpessoais e relacionais do mundo atual. Brunfault falou da necessidade de uma visão de gestão de negócios e pessoas e questionou o significado de sucesso e como uma abordagem transparente e mais relaxada com os profissionais e parceiros de seu estúdio, trabalhando de forma mais autônoma e colaborativa, transformou o BASE em um ambiente aberto, prazeroso e igualmente produtivo e criativo. Essa abordagem equilibra individualidade, trabalho e vida pessoal, representando uma reflexão madura de uma vida dedicada ao design.
Recapitulando o que vi e apreendi após esses momentos especiais no LADFEST:
1 - Paixão pelo fazer e respeito à história do cliente
2 - Experimentação e profundidade crítica
3 - Subversão de sistemas tecnológicos e interação ativa
4 - Nostalgia fantástica
5 - Poesia concreta, modernista e sensível
6 - Retórica política e paixão caligráfica
7 - Diligência, obstinação e consistência
8 - A vida é uma ilustração colorida
9 - Identidade, originalidade e individualidade
10 - Persistência e manter-se fiel a si mesmo
11 - Tudo o que fazemos é por amor
12 - E depois de tudo isso ... O que representa sucesso?
Considerações finais
Os processos de design e automação, juntamente com as ferramentas, recursos digitais e meios descentralizados de produção, recentemente dominaram o mercado e o mundo, decretando a "morte" do design gráfico como função na esfera produtiva do fazer e criar. Tornou-se um luxo na cadeia produtiva. Sistemas e produtos digitais demandam uma nova ordem de profissionais e processos produtivos, e as planilhas de custos das corporações em processo de transformação digital parecem não ter considerado os profissionais do design e da comunicação visual.
Nesse processo, muitos profissionais de design migraram para outros empregos e assumiram funções distintas em empresas de tecnologia, muito mais operacionais e minimamente criativas e originais. No entanto, o resultado atual da bolha desse mercado, acelerada durante e no pós-pandemia, são equipes ociosas e as demissões em massa.
Observar uma ressignificação da profissão do design e ouvir profissionais criativos que resistiram com seus estúdios, assim como aqueles que, mesmo sendo tão jovens, encontraram espaço em outros mercados e conquistaram clientes diferentes dos das grandes empresas de tecnologia e instituições financeiras, é realmente inspirador - quase um renascimento em meio à precarização do trabalho.
Talvez o questionamento e a reflexão estejam justamente nesse ponto: retomar a ideia de um futuro local, pequeno e atemporal, voltando nossas atuações para campos, públicos e oportunidades mais específicas e particulares, construindo uma economia menos ambiciosa e predatória, seria o contexto que o design precisa para ser relevante novamente, humano, com consistência, originalidade e criatividade.
Talvez, mas sem certeza alguma, seja possível afirmar que, onde não houver grandes corporações e produção em escala mastodônticas para audiências massificadas, será onde o design pode ser verdadeiramente criativo e original.
Pontos altos!
A organização impecável do evento e a simpatia dos parceiros e voluntários da organização. Todos de uma gentileza sem fim - antes, durante e após o evento.
A cidade de Lima, cheia de belezas e encantos; os amáveis e receptivos peruanos; o belíssimo Teatro Municipal; toda cultura e tradição presentes na história pré-colombiana do país; a arquitetura das suas casas, prédios históricos e museus; suas ruas com suas ordens e desordens; a fantástica e inigualável comida peruana.
Banderas Rojas!
Num evento LATINO cheio de personalidade e discursos de resistência cultural, feito por e para uma comunidade latino-hispânica, ver brasileiros recorrendo ao Inglês para se expressar foi bastante frustrante, senão constrangedor.
O portunhol e mesmo o Português, certamente seria mais simpático e muito mais compreensível para a maior parte dos presentes.
Aos organizadores: no próximo evento, audio-tradutor Português-Espanhol!
Aos palestrantes e expositores brasileiros… deixem o Inglês pros anglófonos.