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A sociedade dos dados e a morte silenciosa da Imaginação

  • Foto do escritor: Marcio Leite
    Marcio Leite
  • 3 de dez.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 3 de dez.

Como a internet onipresente e a tecnologia ubiqüita estão dissolvendo nossa privacidade e nossa capacidade de imaginar.


Publicado por Márcio Leite, Novembro de 2025.


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Imagem: Morte alegórica da musa Imaginação em estilo neoclássico romântico com florestas de Botticelli e códigos e dados Matrix. (Imagem gerada por AI ).


Há 17 anos, em 2008, quando ainda estava cursando o mestrado, em Londres, partindo de algumas leituras sobre transformação digital e inovação, escrevi um trabalho sobre algo que, à época, parecia um pouco exagerado: a ideia de uma internet 3.0, ubíqua, presente em todas as coisas. O texto provocava e ia além, constatando que essa pervasividade nos levaria a um “fim da privacidade" e talvez até "do pensamento livre”. Meus professores ouviram, mas o texto não ecoou muito. Não convenceu. Afinal, aquilo era um curso de design e aquela discussão filosófica sobre tecnologia parecia distante demais, ou uma narrativa de filmes de sci-fi dos anos 70 que assistimos quando adolescentes.



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Imagem: Posters e cena do filme THX 1138, dirigido por George Lucas (1971).



Mas o fato é que hoje, em 2025, aquelas questões não estão tão distantes assim.


A internet se dissolveu no ar e está em tudo. Especialmente na intermediação e oferta de serviços. Nesse sentido, o que o mercado, consultorias e corporações, convencionou chamar de "dados do usuário", são na verdade um minucioso mapeamento de todos os momentos, preferências, desejos, motivações e expectativas, dos indivíduos conectados, que vivem dentro do grid sistêmico da nossa sociedade.


O aplicativo de caronas já sabe para onde você vai, digamos, às quartas-feiras

às sete da noite, ao abrir do aplicativo, antes mesmo de você digitar a localização desejada, apenas pela recorrência. O app de entrega de comida sabe o que você pediu nos últimos jantares de sábado a noite e te oferece exatamente os mesmos pratos e restaurantes já nas primeiras telas de busca. A cada ciclo mensal, após você receber seu salário e suas contas e faturas serem automaticamente debitadas, o banco te sugere investimentos baseados não no que você quer arriscar, mas no que sua rotina financeira indica que você “deveria querer” dentro de seus produtos existentes.


E não é só isso, as plataformas de entretenimento oferecem, junto do seu último blockbuster, um trilho inteiro “baseado em suas ultimas escolhas”, sejam músicas, games, séries ou filmes. Da mesma forma, as plataformas de viagem sabem para onde provavelmente você irá nas próximas férias, apenas pela frequência de suas buscas em pontos turísticos em determinadas regiões, os aplicativos de hospedagem te mostram a casa que parece combinar com o seu estilo de vida, baseado em suas buscas e “likes” estéticos em outra plataforma visual, além de considerar mais de 800 fatores para mostrar a você as acomodações com maior probabilidade de resultarem em uma avaliação 5 estrelas sua.


Sem contar aquelas plataformas e redes sociais que cruzam os seus "dados" com os de seus amigos próximos ou de maior interação, a partir do registro dos últimos compartilhamentos deles com você. Isso com a ajuda, claro, de tudo o que você ao longo do dia atribui “coraçãozinho, gargalhada, bravo ou triste”.


Surpresos? Sim, o feed de um amigo também influencia a oferta de conteúdos similares para você, e isso vale para conteúdos de artes, fofocas de celebridades, horóscopos, memes, restaurantes, bares e certos tipos físicos semi-nus. E não, a rede social não está te escutando, são apenas os algoritmos que estão atentos aos seus toques e rolagens durante o dia, na semana, e do acúmulo do tempo total do uso de tela.


As redes sociais apenas nos devolvem versões editadas das nossas "verdades e crenças" mais intimas. Elas aplicam filtros que confirmam e reforçam quem já fomos até ontem; reassumem preferências a partir de quem está na sua companhia hoje; e apostam em preferências que serão as suas num futuro próximo, sugerindo discursos análogos. Lembram do escândalo da Cambridge Analytica em 2018, e as eleições no Brasil no mesmo ano?


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Imagem: "Filter bubble”, termo cunhado pelo ativista de internet Eli Pariser, refere-se a situação onde indivíduos se tornam intelectualmente isolados por conta de buscas personalizadas.


Todos os aspectos básicos da vida: comer, locomover-se, desejar, planejar, estão neste momento atravessados por uma camada invisível de leitura

e previsão dos nossos comportamentos e compreensões. Nossos movimentos nas telas viram “dados ultra-personalizados", micro-expressões da sua individualidade que são mapeados e rastreados em tempo real pelo uso recorrente do seu celular, apps de serviços, deslocamento e redes sociais.

Tudo isso junto vira um acúmulo de informações sobre quem é você nos sistemas.


Se nas mãos de um governo, chamaríamos essa hiper-vigilância sobre os dados dos sujeitos de vigilância totalitária; nos data centres de bigtechs e grandes corporações há um nome diferente, capitalismo de vigilância. Esse termo se refere a quando essas empresas "datificam" o sujeito para previsibilidade e monetização em meios digitais, sem seu conhecimento pleno ou com superficial consentimento: "Li e concordo com os termos de uso".


E isso nos leva ao ponto que, lá em 2008, parecia pura especulação e ficção sobre tecnologia: a perda da privacidade. Mas, especialmente com as AI's, isso implica não apenas a perda da privacidade tradicional, aquela ligada aos nossas informações pessoais cadastrais ou de hábitos e freqüência de consumo. É algo que se torna ainda mais íntimo e profundo, anímico.


Me refiro à nossa subjetividade, a privacidade mental, o espaço mais íntimo dos nossos pensamentos e divagações, onde nossas ideias e suposições brotam, antes mesmo de virarem desejo e ação. E isso leva a meu segundo ponto, algo ainda mais delicado: a perda do pensamento livre.


Quando tudo à nossa volta prevê e antecipa o que vamos desejar, querer, cobiçar, fazemos cada vez menos movimentos conscientes. Passamos a operar em sistemas digitais que se retroalimentam do nosso próprio passado e probabilidade de futuros. E quando o futuro é construído apenas a partir dos registros das nossas escolhas anteriores, a vida vira um grande replay, eficiente, confortável, mas terrivelmente previsível e uniformizador. Nos coloca numa condição de embotamento mental.


E é aí que perdemos algo essencialmente humano: a imaginação.


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Imagem: cena do desenho animado “Os Jetsons”, George Jetson trabalhando. Hanna Barbera (1962); cena do filme “Her”, Theodore instalando sua assistente de AI. Spike Jonze (2013).


Se já não precisamos imaginar o caminho, a paisagem, o prato, os sabores, a viagem, o clima, o desejo, a próxima parada (porque tudo isso nos é sugerido como opções seguras, pelos algoritmos) o músculo da imaginação vai atrofiando. E junto dele, o pensamento crítico, a curiosidade, a capacidade de criar mundos novos, fantásticos e possíveis.


Para que a imaginação exista, é imprescindível perder o medo de errar, de se perder e ter um grande apreço pelo risco. É isso que nos leva mais longe e nos faz ter ousadia. Sem isso, nos tornamos sujeitos autômatos, sem alma e sem brilho nos olhos.


Essa é a perspetiva fa-xxx-ista que a tecnologia e hiper-automação nos traz. A mecanização do pensamento, a grande previsibilidade - o mundo de Apolo. E surge uma não aceitação, uma aversão refratária ao erro, ao engano, ao imperfeito, ao inacabado, ao experimental, ao ressignificar, à aleatoriedade - características próprias de Dionísio.


É um processo silencioso, não percebemos no dia a dia, mas ele está em curso. E as novas gerações já são moldadas dessa maneira: observo que estudantes e jovens profissionais já não querem mais se arriscar e experimentar soluções, os jovens das gerações atuais temem e evitam a frustração advinda do erro. Hoje eles esperam pelo canvas, pelo template, pelo modelo, querem a correção automática, “me fala onde eu devo acertar”. Não há mais ambiente nem espaço para a imaginação livre, que gera e pari o novo, o inusitado e o inesperado.


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Imagem: Estampa de mãos da Cova de las Manos, 9.000 anos, Patagônia Argentina, Public domain, através da wiki Wikimedia Commons; Macaco comendo cacau (i-stock).


E talvez este seja justamente o paradoxo do nosso tempo e o grande desafio que surge com a hiper-digitalização, quanto mais a tecnologia nos conhece, menos nos reconhecemos como seres capazes de imaginar para além dela.


Começa a se tornar impossível nos imaginarmos fora do previsível, longe do conteúdo filtrado que define o modelo da “perfeição aceitável”. Essa perfeição, tão confortável quanto ilusória, nos coloca num estado de passividade contínua, uma espera segura em que “o problema e a solução rápida pertencem ao outro”. E esse outro, que tudo controla, só opera porque depositamos nos sistemas uma confiança total (fé?) que dispensa questionamento.


E sendo a imaginação essa ferramenta humana ancestral que nos trouxe até aqui, o que acontecerá se perdemos essa capacidade, justamente pelo apodrecimento mental (brain-rot) que essa tecnologia nos condiciona?


Estaria a hiper-automação e a hiper-digitalização nos tornando mais covardes, medrosos, embotados e sem imaginação?




REFERÊNCIAS


Bechmann, Anja - The Ubiquitous Internet: User and Industry Perspectives (2018) https://www.amazon.com.br/Ubiquitous-Internet-User-Industry-Perspectives/dp/1138548537


Morozov, Evgeny - Big Tech - A ascensão dos dados e a morte da política (2018)



Pariser, Eli -  The Filter Bubble: How the New Personalized Web Is Changing What We Read and How We Think (2012) - https://www.amazon.com/Filter-Bubble-Personalized-Changing-Think/dp/0143121235





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