Como a aceleração dos processos de transformação das indústrias, as novas demandas e as novas práticas do design, estão distorcendo a percepção do que deve ser a formação do profissional de design.
Publicado independentemente por Márcio Fábio O. Leite - março de 2021.
Muito recentemente, tive de instruir uma equipe de recrutamento de RH para selecionar um profissional para nosso time de trabalho, uma equipe de Design Estratégico e Inovação de uma grande empresa de mídia e entretenimento.
Precisávamos de um designer, sem dúvidas, mas com especialidades e interesses particulares.
Nas vagas e escopos pré-definidos da empresa haviam porém, um número limitado de nomenclaturas dentre as quais e eu deveria obrigatoriamente escolher uma delas. Entre essas estavam: o designer GRÁFICO, o WEB designer, o designer DIGITAL, o MOTION designer e a nomenclatura mais recentemente criada, o UX/UI designer. Nenhuma nos atendia, portanto.
Mesmo após explicar detalhadamente o perfil do designer que buscávamos, um profissional com uma visão crítica de processos de design, com foco e interesse em negócios e serviços, não fomos convincentes, gerando mais estranheza entre os recrutadores sobre o que seria esse profissional.
"Mas não é um designer?"
Pela urgência, a vaga foi criada com o título de "designer gráfico-estratégico". Recebemos mais 1.300 inscrições em menos de 3 semanas. Mas ainda que o escopo divulgado fosse bastante claro, todos candidatos intencionavam criação e direção de arte, ou estratégia de comunicação em redes sociais.
Retornamos o escopo da vaga para a equipe de RH e a maneira que encontramos para explicar a função e o perfil do profissional, foi fazendo uma analogia com a medicina e as especialidades médicas. Todos médicos se formam numa faculdade de medicina onde recebem a base generalista da profissão e podem se tornar clínicos gerais. Durante a formação universitária, direcionam seus estudos para certos temas de interesse pessoal e, quando formados, se direcionam a esta ou àquela especialização (cardiologia, ortopedia, nefrologia, etc).
Tal qual um cirurgião plástico, o designer gráfico (com foco em direção de arte e comunicação visual) se interessa pela funcionalidade estética e os processos próprios dessa especialidade; já o designer estratégico (com foco em processos, serviços e negócios) seria como o ortopedista-osteopata, que se debruça a entender o estrutural sistêmico, buscando prover a melhor performance funcional do todo a partir da melhor ativação das partes.
Após esse ajuste e alinhamento de perfil com o RH, o processo de seleção seguiu e tivemos uma boa oferta de profissionais especializados interessados na vaga.
Entendemos então, a partir dessa experiência, que como designer estratégicos e service designers, ainda nos falta enquanto categoria emergente, o tempo de maturação dessas especialidades e abordagens dentro das organizações, além de uma maior expressão no mercado.
Muito embora as especialidades ainda não sejam um consenso, parte do meio corporativo já é bastante familiar com os métodos colaborativos e ágeis advindos dos novos discursos e práticas de inovação colaborativa, já bastante promovidos em convenções e eventos nos últimos anos e, só agora mais intensificados devido a pandemia do Covid-19 e o necessário trabalho remoto.
Discutindo com outros colegas profissionais, de outras empresas onde há times de design estratégico e inovação, entendemos que justificar e recrutar o perfil profissional torna-se em sí um desafio a ser transposto.
A falta de clareza e evidente desconhecimento do que é a profissão, a própria justificativa para a constituição de times de design estratégico nas empresas e qual formação requerida para a função, se confundem: facilitadores de workshops, agilistas, designer thinkers, scrum masters, designers de UX/UI e service designers.
Muito além, mas não muito diferente do dilema "designer gráfico ou micreiro" dos anos 90, me parece que a questão hoje gira entorno de se investir na contratação de designers graduados e especializados para a função, ou de outros profissionais, vindos de graduações diversas mas capacitados nas práticas de design através de cursos rápidos, mentorias ou tutoriais de influenciadores do Youtube. A questão que se extende é se esses últimos seriam suficientemente capacitados para as demandas complexas.
Embora seja positivo termos essa diversidade de perfis nos times, ainda acredito que não devemos nos distanciar da formação superior em design, para a efetividade e integridade da profissão e das práticas. Cadeiras acadêmicas como história do design e da industrialização, história da arte e da tecnologia, compreensão de processos gráficos e fabris (processos de impressão, princípios da fotografia, serigrafia, tipografia, gravura, plástica, oficina de materiais expressivos e processos industriais) além da iniciação em sociologia, antropologia, filosofia e psicologia, são absolutamente indissociáveis da formação do "pensamento sistêmico do design”, tal qual a formação essencial em medicina e fisiologia são indispensáveis para qualquer posterior especialização médica.
[Evolução dos processos de impressão (fontes diversas, autoria desconhecida)]
Especialmente dentro de corporações, a percepção de valor das especialidades de design estratégico e service design certamente só vem pelos resultados alcançados e métricas estipuladas a partir da prática consistente, dos consecutivos aprendizados gerados nesses espaços e da evangelização de times a partir dos métodos.
Temos visto que os ganhos e resultados positivos já são bastante claros para quem abraça a abordagem, em diferentes setores. Mas internamente, os times e áreas pares ainda não sabem bem pelo quê pedir.
Contudo, independente da nomenclatura ou novas especializações que possam vir a surgir, fruto dos tempos e transformações das demandas da sociedade e da indústria, os estudos na universidade são insubstituíveis na formação do profissional crítico e pensante.
Ainda que, com algum espanto, existam profissionais pela prática - autodidatas bastante competentes - que se propõe a questionar a necessidade da formação universitária, é preciso ressaltar que a ausência da formação da construção crítica e da retórica aprofundada, vai limitá-lo apenas à funções operacionais, por mais habilidoso ou conhecedor que seja, tal qual um apertador de parafusos e replicador de fôrmas.
Por mais hábil e competente que este prático possa ser, a ausência da formação acadêmica de base pode limitá-lo a um fazedor de telas e interfaces, um replicador de frames e modelos ágeis, submetido a um sistema maior (este sim estruturado de forma crítica e estratégica). Esses tornam-se seus limites, se não entender que, o que realmente move a universalidade e a expansão da atuação da profissão é o pensamento crítico estruturado. Se ele não domina a retórica do que executa, logo ele é incapaz de justificar a relevância do que produz.
É irônico, mas o que garante a sua prática "autodidata" é justamente o pensamento universal e a educação superior.
Ou seja, sua pesquisa por referências, os conteúdos e modelos a que ele recorre para sua empregabilidade e até mesmo as ferramentas, plataformas e softwares que utiliza, tudo o mais o que define os critérios da sua prática "autodidata" do design, são a produção de conhecimento pela pesquisa da universidade e os que lá estão.
[A Escola de Atenas (Scuola di Atenas), Rafaello Sanzio, 1509 e 1511]
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