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  • Foto do escritorMarcio Leite

Um corpo no asfalto da Faria Lima

Como produtos digitais podem prover serviços eficientes e, ainda assim, construir sistemas mais humanizados e sustentáveis.



 

O incomodo


Se você mora em uma grande capital e utiliza apps de serviço de entrega, um constante e silencioso incomodo pode ter te perseguido desde os meados da pandemia em 2020, a toda vez que, ao retirar suas entregas na portaria do seu prédio percebeu que:


… o entregador(a) está em visível fragilidade social-econômica;

… o entregador(a) está exausto;

… o entregador(a) está trabalhando em condições climáticas extremas (calor, frio ou chuva intensa);

… o entregador(a) está machucado, semi-imobilizado ou tem alguma limitação de locomoção;

… o entregador(a) é gestante, idoso ou aparenta ser menor de idade;

… o meio de transporte está visivelmente inadequado para o trabalho que ele exerce;

… o valor da sua compra é eventualmente superior à renda diária do entregador;

… o sistema não estipula uma gorjeta inicial de no mínimo 10% sobre o valor da compra, como em um restaurante;

… quando há um erro na entrega, o modelo de negócio é opressor e pune na ponta mais frágil;

… o entregador está morto, estirado numa via pública movimentada, ainda preso à mochila de entrega.




 

Contexto


As questões e discussões sobre os novos modelos de trabalho da era digital, como no caso dos entregadores de aplicativos digitais, não são uma novidade e nem uma exclusividade do mercado brasileiro.

Algumas publicações, artigos e livros lançados recentemente levantam o tema da economia 4.0 e as implicações sobre as visões neo-liberais sobre as relações de trabalho no mundo dos serviços digitalizados.


As recentes transformações legais e lacunas nos direitos trabalhistas, vem sendo discutidas recorrentemente a respeito dos novos modelos “uberizados” de trabalho. Modelos esses apoiados na espoliação do trabalhador em função de ofertas de serviços rápidos e convenientes, onde apenas uma parcela da sociedade pode usufruir de comodidades, como por exemplo, receber suas refeições de forma rápida, na porta de casa.


Na outra ponta, o hábito quase automático de solicitar o que se quer, em poucos toques de navegação no celular, a qualquer hora, faça chuva ou faça sol, rapidamente ganhou escala e adesão nas grandes cidades no período da pandemia de Covid-19, durante os lockdowns.




Esse hábito porém, expõe uma ferida maior: o abismo da desigualdade social que leva um exército de jovens periféricos, em sua maioria, de baixa escolaridade e desempregados, a se submeter a longas jornadas de deslocamento pelo trânsito, sem nenhum respaldo ou suporte de proteção no trabalho (como regras claras para preservação da sua integridade na atuação da função, seguro de vida, equipamentos de segurança para o trabalho realizado, ressarcimentos, benefícios de saúde, alimentação ou simplesmente uma remuneração adequada).


Basta um meio rápido de locomoção (uma moto de baixa cilindrada ou uma bicicleta alugada de um serviço terceiro), um smartphone com dados suficientes para o cadastramento e para receber as chamadas de entregas. Além, é claro, da disponibilidade de tempo no seu dia, definida pelo próprio prestador, para um serviço “eventual”, em troca de alguns Reais extras no orçamento (o que, reconheçamos, para muitos, tornam-se jornadas longas, extenuantes e arriscadas, em troca de uma fonte de renda que é, na grande maioria das vezes, única).





 

Da concepção à implementação - a complexidade


Recentemente estive presente na palestra de uma representante de um desses aplicativos de entrega e na sua exposição, o modelo de negócio apresentado, se compromete com o tripé: 1) restaurantes/serviços, 2) entregadores, 3) usuários-consumidores. Num rápido slide, explicou como a satisfação das necessidades desses atores era essencial ao negócio, assim como qualquer “frustração” em uma dessas pontas resultaria num serviço ineficiente ou inviável.

O problema porém é que, da forma muito superficial como a que foi apresentada, as necessidades dos entregadores a serem supridas parecem se limitar à oferta de uma fonte de renda extra rápida, em troca de um trabalho "simples". Porém, se dermos um zoom-out no cenário, o contexto social e econômico que emerge no entorno do serviço, é muito mais complexo.

Sim, o modelo de serviço seria perfeito se qualquer indivíduo pudesse disponibilizar 1 a 3 horas do dia para entregas rápidas em locais ao redor do seu bairro, em troca de um incremento na sua renda mensal. Na Noruega talvez.

Há que se considerar que, quando falamos de megalópoles como Rio de Janeiro e São Paulo, México, Nova York ou Londres, o trânsito e o modal de transporte a ser adotado, o contexto sócio-econômico dos imigrantes, periféricos e desempregados que aderem ao modelo, sua localidade de origem e o deslocamento por quilômetros fora do seu raio de moradia, violência urbana e demais riscos, são implicâncias que podem transformar um dia de entrega em seu último dia de vida.





Não bastassem as complexidades naturais das grandes cidades, as mesmas


"dispõe agora de uma nova geração de serviços de entrega (com nomes como Gorillas, Getir e Gopuff), que prometem entregar itens básicos de mercearia, como bananas, cerveja em lata, Doritos e outros, na sua casa, em apenas 10 minutos,”

(site Exame, Por Alex Webb, da Bloomberg Businessweek - online)


A novidade, que surge também no mercado nacional como uma nova "feature" nos aplicativos oferecendo essa mesma comodidade ao usuário local, na verdade aumenta a pressão sobre os entregadores pela corrida da entrega dentro do tempo pré-estipulado pelos APPs.


Além disso, para reduzir o tempo de entrega, o sistema conta com dois outros recursos disruptivos: dark-kitchens - cozinhas industriais instaladas em galpões ou mesmo em apartamentos adaptados em prédios residenciais - e dark-stores - armazéns com gerenciamento de estoque digitalizado que se espalham por toda cidade; ambos impactando a vizinhança e gerando desvalorização imobiliária em suas localidades.




Onde entra o design na construção dessas jornadas e qual responsabilidade e obrigação desses novos negócios na construção de serviços humanizados?


Por serem sistemas mais ou menos planejados, que partem de um MVP, ainda em sua fase de startup e rapidamente evoluem para produtos digitais “super app” - com múltiplas funcionalidades e serviços embutidos - a maioria dos impactos parecem ser impossíveis de serem previstos. Assim, quaisquer melhorias e aperfeiçoamentos do serviço precisam ser "pivotadas" a partir de análises continuas, on the go.


O grande problema é quando o foco desses negócios recai sobre a escalada de crescimento rápido das bases de usuários e imediatamente os esforços de desenvolvimento do produto e serviço concentram-se apenas em incrementos para o consumidor na ponta final (interface digital, novos subprodutos e serviços, clube de fidelização, cashback, pontuação, etc), abandonando-se as outras pontas que são sustentáculos do modelo de negócio.


Quando diz-se de um produto human-centred-designed, o impacto social há que ser considerado como prioridade de forma global, e não apenas o “usuário-consumidor“ do serviço. O produto precisa ser human-centred, focado em pessoas, tanto na ponta dos serviços provedores essenciais (cozinhas, embalagens, origem de produtos e insumos, restrições legais, implicações econômicas) como na ponta dos serviços viabilizadores (entregadores, operadores, estoquistas, infraestrutura urbana, habilitadores legais, suporte e manutenção).


O que esses atores chave do sistema tem como necessidades, impeditivos e gargalos (mas também suas visões e expectativas) são informações de grande valor para o negócio para melhoria continua e geração de inovação sistêmica.


Isso pode resultar tão somente numa contenção de custos excedentes, bem como em lucro real ou ainda novos canais de lucro, dentro de uma cadeia inteligente e sustentável.



 

Pesquisa, Pesquisa, Pesquisa e Pesquisa


Por isso o primeiro passo essencial é a investigação contextual por uma abordagem antropológica e de design, continua, para compreensão dos panoramas e identificação dos pontos de origem dos desafios (problemas ou oportunidades).

Sem pesquisa é impossível identificar as populações que participam e mantém o ecossistema que se forma entorno do serviço, suas características, hábitos, subversões, necessidades e motivações de uso.


Sem pesquisa é impossível mapear seus fluxos e pontos latentes de incremento e disrupção em suas jornadas individuais.


Sem a imersão dentro dos contextos regionais, de micro-grupos e comunidades, e sem o profundo conhecimento dos indivíduos pertencentes a serem impactados pelo ecossistema do serviço, a criação, construção, gestão e manutenção de serviços digitais se torna tão superficial e frágil quanto a certeza do retorno do investimento no desenvolvimento dos mesmos.


Não há análise heurística ou teste AB de funcionalidade de um produto digital que se sobreponha à uma investigação de campo com todas as pessoas do ecossistema do serviço. Enquanto aqueles são indispensáveis para a manutenção da operação técnica, jamais levarão à compreensão dos problemas e oportunidades no sistêmico como este último citado.



 

System design thinking


A visão e o pensamento sistêmico de design é a chave pro desenvolvimento de inovação sustentável, real e com impacto positivo em toda cadeia de suprimentos, produção, armazenagem e consumo.


O pensamento sistêmico é uma abordagem que os designers usam para analisar problemas em um contexto apropriado. Ao olhar além dos problemas aparentes para considerar um sistema como um todo, os designers podem expor as causas principais e evitar apenas tratar os sintomas ou pontos isolados do sistema. Eles podem então enfrentar problemas mais profundos e ter mais chances de encontrar soluções eficazes gerando impacto positivo.




Mapeamentos sistêmicos criados pela empresa holandesa de design, engenharia e sustentabilidade EXCEPT Integrated Sustentability - a empresa usa o pensamento de sistemas integrados para construir estratégias inovadoras, projetar conceitos realistas e criar roteiros que catapultem projetos para um futuro melhor, regenerativo e saudável.



Se num primeiro momento a transformação digital demandou o uso das abordagem de design para uma mudança de cultura e de mentalidade nas corporações, com novas práticas, métodos e organizações de times; o segundo momento foi a rápida escalada dos sistemas de design e produtos digitais e a consecutiva alta demanda por novos profissionais, com capacidade técnica específica dentro de novas lógicas de trabalho; seguidos da intencional "educação" dos usuários nessas novas lógicas de leitura, navegação e uso pela repetição de convenções e padrões de linguagem adotados.


O prazo esperado para essas transformações ocorrerem, como então estimado por muitas consultorias de tecnologia, seria de um período de 5 a 10 anos.


Contudo, o contexto da pandemia acelerou esse processo e isso nos trouxe ao momento atual, em um mundo que discute a severa ameaça do impacto climático-ambiental, a escassez e limitação do uso de certos recursos naturais, a reinvenção (digitalização) das moedas e da economia global, além de uma consensual reflexão das massas sobre o próprio consumo.


Mais que isso, a revisão dos modelos organizacionais produtivos e a implicação de profissionais estratégicos com uma visão mais ampla sobre os sistemas e capacidade de mapeamento e predição dos impactos. Nesse sentido, somente a visão e o pensamento sistêmicos serão capazes de promover uma transição aos novos negócios regenerativos e sustentáveis.


Na dúvida, consuma local - ir a pé até seu mercadinho mais próximo pode gerar maior impacto positivo, pelo menos por hora.



 

Referências


Livros


 

Artigos na mídia - Motociclistas entregadores e direitos legais

















 

Artigos na mídia - Dark kitchens e dark-warehouses









 

Artigos na mídia - Pandemia e Digitalização




https://estudio.folha.uol.com.br/embratel/2021/07/pandemia-acelera-revolucao-digital-nas-empresas.shtml


 

Design Cases e ferramentas






https://www.impactmapping.org/




 

Documentários - TV




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