O estereótipo na imagem voltada para o público infantil.
[Projeto conduzido pela prof.ª, Mestre em Design Ana Paula Zarur, nas FATEA Faculdades Teresa D'Ávila, Lorena, 1998. Artigo a partir do texto integral original publicado nos Anais P&D Design, 2000. FEEVALE, Novo Hamburgo, RS. 29 de outubro a 01 de novembro de 2000.]
Há pouco mais de 20 anos, quando ainda era bolsista de iniciação científica na faculdade em que estudava no interior de São Paulo, tive o primeiro contato com processos de pesquisa de design na prática.
Na época, eu e minha colega Ana Paula Tavares éramos estudantes do curso de Design e assistentes da professora e mestra Ana Paula Zarur em sua pesquisa, Imagens para Crianças - por um estudo da recepção das imagens pelas crianças.
Aceitávamos qualquer desafio para poder aprender e absorver novas informações numa época pré-internet. Aprendemos na prática a ser profissionais destemidos
e aplicados na hora de ir a campo para colher dados de pesquisa, mesmo sem ainda entender muito bem para que servia tudo aquilo.
Visitávamos escolas públicas e particulares na região do Vale do Paraíba para entrevistar crianças em fase de alfabetização. Ziguezagueando por ruas de terra batida numa Mobilete 82, minha colega pilotava e eu, na carona, carregava na mochila pirulitos, balas e as ferramentas visuais de pesquisa.
Fazíamos o que hoje é cada vez mais conhecido no Brasil como design research.
Essa é uma lembrança curiosa e engraçada que gosto de contar para mostrar que fazer design pode exigir mais horas pensando e tentando entender as pessoas
dentro de seus pequenos universos e contextos – apropriando-se de seus repertórios e percepções para dar suporte a nossas ideias – do que executando mil plugins,
softwares e ferramentas de edição de imagem.
[Ana Paula Tavares e Marcio Leite. Painéis expositivos para apresentação do projeto de pesquisa no 8º N Design Curitiba, na PUC Paraná, em Julho de 1998]
O desafio
O desafio deste trabalho era entender como as ilustrações e suas cargas simbólicas eram introjetadas, absorvidas e interpretadas por crianças do ensino básico fundamental.
Queríamos entender a construção e discutir a presença maciça de estereótipos e ideias pré-concebidas em imagens voltadas para o público infantil, tanto em produtos culturais como materiais pedagógicos.
Além disso, queríamos entender como os contextos sócio-econômicos e culturais onde estas crianças estavam inseridas, poderiam afetar suas leituras e compreensões.
A justificativa do estudo
Como publicado pela professora, mestre em design Ana Paula Zarur, no 4º P&D Design, em 2000:
"Graças à expansão dos meios de comunicação de massa, as crianças de nosso país são expostas diariamente a uma enorme variedade de imagens. Tratadas com razoável deferência pela industria cultural, já que parecem constituir um público consumidor ávido por novidades, as crianças hoje em dia podem ter acesso a livros, revistas, programas de televisão, sites na Internet, CD-Roms, quadrinhos, filmes, ou seja aos mais diversos produtos de mídia, especialmente elaborados para elas. Tal situação faz com que estudos sobre o conteúdo ideológico das imagens destinadas ao público infantil ganhem relevância. Afinal, diante desse contexto, parece muito pertinente perguntar que valores estão sendo transmitidos para as crianças através dos meios de comunicação."
O trabalho já apontava ali, nos anos 90, uma profunda preocupações acerca de perpetuações de modelos mentais ultrapassados, clichês culturais ou deturpações resultantes de valores morais e éticos questionáveis, sendo representados graficamente em obras e produtos de mídia para crianças.
A falta de representatividade e diversidade de papéis é percebida em valores que remontam uma visão racista do século XIX e início do século XX, como são exemplificados por ela:
"O processo de estereotipagem da ilustração segue uma lógica bem simples. Por exemplo, parece ser de senso comum que as crianças compreenderão melhor que determinado personagem é uma empregada doméstica apenas por que ela se apresenta negra e gorda como a tia Nastácia do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Esta crença acaba gerando uma produção em série de empregadas Tia Nastácia. Quanto mais tias Nastácias são retratadas, mais forte fica a ideia de que empregada é gorda e negra. Isso se torna um circulo vicioso e tira boa parte da graça das ilustrações. "
Ainda no campo dos modelos sociais ultrapassados, Zarur aponta a representação de atividades profissionais e recorrente sexismo:
"Por exemplo, no que se refere às atividades e profissões que aparecem nos livros analisados pelo citado trabalho, os homens costumam ser retratados trabalhando com maior frequência que as mulheres. Estas por sua vez quando aparecem em ambiente profissional, costumam ter carreiras subalternas (menos valorizadas pela sociedade) ou tradicionalmente associadas ao gênero feminino (como professora)."
[Quadro comparativo conforme publicado nos anais do 4º P&D, em 2000]
Ainda segundo Ana Paula Zarur sobre a importância e relevância acadêmica da inciativa;
"A fim de discutir essas questões foi criado em maio de 1998, nas Faculdades Integradas Teresa D'Ávila, o projeto Imagens para crianças. Seu objetivo principal é levantar aspectos relativos à recepção das imagens por parte do público infantil. O Imagens para Crianças também visa aperfeiçoar o aluno da graduação de Design, incentivando a procura por soluções criativas, promovendo o estudo de questões teóricas relacionadas ao tema, e pondo constantemente à prova sua capacidade de se comunicar visualmente com este público muito específico constituído pelas crianças. Espera-se com isso estar fornecendo a estes jovens pesquisadores, conhecimentos técnicos acerca da produção e reprodução de imagens e conhecimentos teóricos e práticos sobre a construção de mensagens visuais."
A abordagem
"O primeiro experimento elaborado por esse projeto visava avaliar até que ponto essa maciça repetição de clichês visuais acaba por introjetar nas crianças certas ideias preconcebidas."
O estudo de campo recaiu sobre estudantes de dois contextos sociais e educacionais diferentes: escolas da rede pública municipal e escolas particulares, todas da região do Vale do Paraíba, no estado de São Paulo. O campo foi realizado mais especificamente nas cidades de Cruzeiro, Lorena e Cachoeira Paulista.
Para a imersão, foram preparados cartões com ilustrações de personagens infantis representando aspectos físicos-biotipos, étnicos e raciais, iconografia religiosa, profissões, animais e insetos, seres fantásticos e antropomorfizados.
Numa sequência estruturada de entrevistas, os pesquisadores apresentavam o set de cartas individualmente para cada criança e pediam que selecionassem 3 delas. Em seguida pediam que elas dissertassem sobre sua escolha, afim de mapear a leitura, suas conotações e interpretações.
Na atividade seguinte, usando canetinhas coloridas e lápis de cor, os pesquisadores pediam que as crianças desenhassem quatro personagens:
1) uma pessoa bonita,
2) uma pessoa inteligente,
3) uma pessoa pobre e
4) uma pessoa má.
afim de entender seus contextos próximos e elaborações de suas narrativas, a partir do seu universo individual e em seu núcleo comunitário e familiar.
"Partindo do pressuposto de que qualquer figura poderia ser apresentada nos desenhos, o objetivo básico era observar a freqüência de determinados padrões, como a associação do cabelo louro à beleza, o uso de óculos à inteligência, etc."
Ao final da atividade de pouco mais de 20 minutos, os pequenos voluntários recebiam pirulitos e balas como recompensa por sua colaboração.
Os achados
Como explica Zarur:
"Foram entrevistadas 192 crianças do primeiro grau menor, com idade entre 6 e 12 anos. A escolha por trabalhar com crianças dessa faixa etária baseou-se no fate de a maioria delas se encontrar no estágio Operações Concretas. Nesta fase a crianças já possui uma organização assimilativa rica e integrada, funcionando em equilíbrio com um mecanismo de acomodação. Ela já parece ter a seu comando um sistema cognitivo coerente e integrado, com o qual organiza e manipula o mundo. As ações físicas passam a ser interiorizadas e a ocorrer mentalmente, e a criança começa a perceber que outras pessoas possuem pensamentos, sentimentos e necessidades diferentes dos seus. Os julgamento morais começam a ser interiorizados nesse período."
Dos achados qualitativos foi constatada uma percepção sexista acerca das profissões, onde as crianças automaticamente relacionavam atividades do cuidar à figura feminina, e profissões que envolviam atividade física, esforço ou mesmo risco de vida, atribuídas à figura masculina.
Curiosamente beleza ou estética foram atribuídas à figuras femininas bem como essas associação com adereços, jóias e roupas. A cor do cabelo era predominante amarelo, em todos desenhos.
No desafio da pessoa má apresentou dois grupos distintos: o primeiro representando figuras fantásticas no campo dos vilões (bruxas, vampiros, diabos, ladrões, etc) e um segundo grupo apontando ações perversas (cortando árvores, batendo num cachorro, causando mal a uma outra pessoa).
No desenho da pessoa pobre, as imagens faziam associação à falta de higiene (roupas rasgadas, piolhos, sujeira). Algumas crianças desenham o cenário de uma favela. A pobreza é triste e muitos personagens representados aparecem chorando. A cor predominante é o marrom.
Conclusões
Como pontua Zarur, é evidente que os padrões visuais se repetem na representação gráfica e isso deve-se evidentemente à forma como as crianças estão sendo ensinadas a ver o mundo e a partir de quais recursos estão sendo alimentados seus vocabulários visuais.
Ainda segundo Zarur, a responsabilidade da transmissão de conceitos e reforço de preconceitos é sem dúvidas compartilhado por toda uma sociedade, porém os meios de comunicação de massa são sim os grande responsáveis por perpetuar alguns conjuntos de clichês.
Felizmente nos últimos 20 anos essas discussões tomaram força e destaque, se tornando um grande foco no cuidado da produção de conteúdo audiovisual e livros, produtos educativos e de entretenimento.
O conceito de "edutainment", conteúdos que entretém educando, surge de forma muito evidente, provocando discussão e reflexão de pedagogos, educadores e produtores de conteúdo infantil, especialmente conforme evoluíram e evoluem as plataformas e ferramentas digitais.
Assim, desde Teletubbies criados em 1998 pela BBC de Londres, até os dias de hoje, muito já se discutiu sobre a não existência de uma linguagem neutra, mas sim de aspectos positivos e negativos inerentes do processo de educação e quais seriam as melhores abordagem para assuntos complexos, próprios de uma sociedade em rápida evolução.
Da apresentadora de TV loira que tipificava um determinado extrato social em uma sociedade multirracial, à princesa negra de New Orleans; da família mononuclear da idade da pedra, ao professor químico pai de 3 meninas com superpoderes; da família com uma empregada doméstica robô a uma esponja do mar com trejeitos neuróticos; os valores aceitos em sociedade evoluíram demais e por conseguinte, também suas representações nas mídias, aparatos de comunicação e instrumentos de educação.
Como reafirma Zarur:
"Os produtos de mídia voltados para o público infantil não são isentos de valores ideológicos, e nunca serão.
É preciso permitir que a criança tenha acesso a imagens onde o protagonista não siga necessariamente o padrão de beleza vigente, onde pais que amem seus filhos não morem necessariamente juntos onde o pobre não seja necessariamente sujo e o inteligente tenha que necessariamente ser representado usando óculos.
Mas para que essa postura seja realmente uma prática libertária é preciso que se dê espaço para que estas coisas também ocorram. Ou seja, o que se propõe aqui não é um patrulhamento ideológico politicamente correto, mas um certo discernimento no momento de se produzir imagens para tal público: a criança deve ter acesso às mais diversas visões de mundo, cabendo a ela realizar suas escolhas."
Refraseando Ana Paula: se queremos um futuro melhor, mais diverso e inclusivo, mais afetuoso e menos agressivo, devemos nos preocupar em oferecer aos pequenos várias visões de mundo, imagens que tratem de seus conflitos, onde o executivo industrial possa ser representado como um negro; a princesa amada possa ser uma menina gordinha e as crianças retratadas tenham sentimentos naturais, que nem sempre serão alegria e felicidade mágica, nas raiva e tédio, ou façam alguma travessura, mas nem por isso estejam condenadas a serem eternamente más e feias ... imagens realmente livres de preconceitos.
[01) Coletânea de imagens de conteúdo audio visual dos anos 90 que já exercitavam modelos novos, e conteúdos muito diversos e com discursos inclusivos dos dias de hoje; 02) Familia representada de forma totalmente diversa no desenho animado "O irmão do Jorel", no canal Cartoon Network; 03) Os personagens gays Bob Esponja e Patrick, do canal Nickelodeon; 4) Livro "Sinto o que Sinto", de Lázaro Ramos, discutindo ancestralidade, pertencimento e diversidade cultural; 5) Livro "Três com Tango", de Just Richardson, narra a história real de dois pinguins machos do Central Park, que adotam um filhote formando uma família pouco convencional.]
[Capa dos anais do 4º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design, realizado em Outubro de 2000.]
Referências
P&D Design 2000 - Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design.
"O estereótipo na imagem voltada para o público infantil", 2000.
_ZARUR, Ana Paula. Por um estudo do significado do livro infantil brasileiro. Dissertação apresentada ao Departamento de Artes da PUC-Rio como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Design. Mimeo, 1997.
_BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1992. p 103.
_PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984. pp. 81-84.
_PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991.
_ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.
_ZARUR, Ana Paula Projeto Imagens para Crianças: relatório anual. Mimeo, 2000.
_ALMEIDA, Paulo Nines de. Educação lúdica: técnicas e jogos pedagógicos. São Paulo: Loyola, 1998. p.50-54.
_DANTAS, Heloysa. Brincar e Trabalhar. In: KISHIMOTO, Tizuko Morchida et al. O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira, 1998.
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